Tradução de Aníbal Fernandes
Não sinto remorsos. Se tenho qualquer coisa contra mim, não é ter matado. O que eu sinto é pena por ter envenenado a minha vida com esta ameaça de prisão.
Mas este «teatral» Tristan Bernard também escreveu romances, na maior parte defendidos da sua fulgurante veia humorística; inesperadas ficções que saíam de outro tom — por vezes amargo e sem nada que o ligasse ao que pontualmente se lia, caucionado pelo seu nome em páginas de revistas e jornais. Foi a sobrevoar esta segunda onda que Bernard, aos sessenta e sete anos de idade, publicou Aux abois (Entre a Espada e a Parede), o seu mais talentoso romance, como já é reconhecido por essa lucidez que a passagem do tempo — a grande varredora de glórias efémeras momento a momento construídas — concede ao julgamento desembaraçado dos compromissos e amiguismos que condicionam com tanta frequência a decisão crítica.
Tem-se dito que Entre a Espada e a Parede é um inegável devedor do Crime e Castigo de Dostoiévski, o mais célebre exemplo literário do acto assassino desmotivado […]; também se diz que foi inspirador do eixo central de L’Étranger de Albert Camus, embora não se conheça uma palavra deste autor que permita dar como firme uma tal filiação.
No que toca a Dostoiévski, depois de alguma semelhança entre os crimes frios do seu Raskolnikov e o deste Duméry, tudo é diferente porque o assassino russo se prolonga numa implacável peregrinação expiatória, enquanto o assassino de Aux abois vive numa ausência de sensação de culpa, numa entrega passiva e com qualquer coisa de entediada aos prazeres que a sua desenvolta situação financeira lhe proporciona.
Duméry está bastante mais próximo do Mersault de Camus; há nas duas narrativas uma história de tempo interior com sucessivas emoções a determinarem a forma como esse tempo se reflecte no tempo exterior; a personagem de Camus não sente, como a de Bernard, remorsos que lhe alterem a energia dos actos de vida, apenas lamenta as consequências práticas — os incómodos da ocultação, a fuga à Justiça — que lhe perturbam a comodidade do quotidiano. Serei ou não uma criatura abominável?, é aqui a crucial interrogação. Não é a pergunta que devo fazer. Verifico isto: não sinto remorsos. Se tenho qualquer coisa contra mim, não é ter matado. O que eu sinto é pena por ter envenenado a minha vida com esta ameaça de prisão.